sábado, 19 de janeiro de 2013

Partir




Partir?, ninguém parte, apenas constrói o muro do esquecimento. Chega a parecer uma ficção surrealista a nossa tendência para sobrepor pessoas diferentes numa mesma conformidade, num mesmo contorno, numa mesma expressão. Os que amamos vemo-los sempre crianças, vemos sempre a suspensão dos seus sonhos por vir, mais tarde vemos a sua luta contra o desencanto e, por fim, a resignação nalgum porto a que chamam sorte e onde tentam encontrar uma racionalidade que justifique tantos projectos desfeitos, tantas expectativas não concretizadas, tantas desilusões.

Se procurarmos bem, nunca teremos de nos queixar, se nos compararmos com os outros, encontramos muitas vantagens em sermos nós, porém, por mais que nos exercitemos em nos imaginarmos outros, vistos de fora, sabemos que estamos amarrados a nós e só a nós, sem poder ser outro que não o outro de nós próprios, e nenhum consolo nos pode atenuar as dores nem nenhuma tragédia pode roubar-nos a alegria. A individualidade outorga-se no corpo e na carne, não há vidas emprestadas, nem vidas aliviadas, nem felicidades por interposta pessoa.

Lembro-me de pensar que o mundo era o que eu via e o que eu imaginava que seria a vida que as outras pessoas me contavam. O meu mundo mais o delas faziam o  mundo que para mim contava. O que tinha racionalidade, totalidade, universalidade. O resto eram subúrbios e esboços da realidade que não chegavam a contar. Um dia, as outras pessoas começaram a morrer e com elas levaram parte do mundo tal como eu o imaginara, iria haver coisas que não iria chegar a ver nem conhecer. Cada um que partia levava consigo uma parte das minhas esperanças e um convidado do meu banquete, até que a mesa ficou quase vazia. Com os lugares postos expectantes. Ninguém parte!

O tempo passou, a juventude passou, parte da idade adulta já lá vai, e sem querer mascarar a velhice com uma surpreendente e patética juventude, recuamos no espaço até aos lugares da memória. Espírito e memória é tudo o que nos resta ainda que a carne ainda esteja vigorosa, os músculos reactivos e o ânimo vigilante. Espírito e memória são o que nos resta, aliás, são o que conta no regresso ao essencial, no regresso à vida com perspectiva, defronte do crepúsculo libertador. David Bowie pergunta-se: “Where are we know?”, regressando ao passado, e nós com ele, porque ele também é parte do nosso passado.

Mas os nossos passos já não são os passos de quem tem o direito ao presente, são sim os passos de quem passa pelo presente para ir a outro lado porque este presente já não lhe interessa, já não lhe pertence, está repleto de cadáveres imobilizados, toda a memória de um tempo perdido, ou temporariamente suspenso, porque não há esquecimento!, senão o voluntário. Aquele que precisamos de impor para viver sem sobrepor os amantes, as idades, as obras, os lugares e tudo – o tempo é o escalonamento do esquecimento. Os nossos passos, na fronteira da realidade a que pertencemos/não-pertencemos, reconstroem no espaço o que emerge da dissolução do tempo: a presença absoluta. Essa presença da vida inteira que não sabemos se é o inferno se é o paraíso. Depende do que tivermos inscrito na nossa carne, no nosso corpo, na nossa indissolúvel individualidade. Sem desculpas.

1 comentário:

  1. Bela meditação sobre o Tempo e o Outro, sem o que não teríamos uma história própria...

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