segunda-feira, 19 de março de 2012

Registos de Cinema XIV, Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação) de Asghar Farhadi, 2011



Há, actualmente, um cinema que não se corrompe na tentativa de manipulação do espectador, que não tenta manipular as suas emoções, nem ser moralista quanto às razões da acção de cada um. Vimos isso em O Segredo dos Teus Olhos, em Num Mundo Melhor (Hævnen) ou em Le Havre e em muitos outros cinemas fora da influência dos modelos de produção estandardizada, industrial e dirigidos às massas enquanto massas.

Este cinema, aparentemente de baixo orçamento, enraíza-se numa tradição poético-literário-dramatúrgica em que a imagem nem se autonomiza, nem se sobrepõe ao desenvolvimento do drama. É um cinema que vive da representação e, por isso, da palavra e da sua pausa, o silêncio. A imagem passa despercebida enquanto intenção estética dando, não obstante, a cor dos ambientes e gerindo os planos com a intenção de fazer sobressair a expressão, a eclosão da palavra e da sua forma de ser soprada, dita, proferida. Na fotografia (cenário), também, de Asghar Farhadi apesar da profundidade de campo dos magníficos planos de conjunto onde a geografia dos espaços, das personagens e das suas relações em conflito se encontram, predominam os grandes planos das personagens, fazendo sobressair a pessoa, essa através da qual soa, a voz e o carácter.

É do carácter que o filme trata, ou seja, da forma como cada um se rege por princípios que assume e mantém, ou que adapta por conveniência de outras causas, ou que manipula por puro interesse próprio. Todas as personagens com capacidade de decisão são confrontadas com a sua consciência e com o dever moral, uns, e imperativo ético, outros, num desenrolar de vários tipos de conflitos: entre marido e mulher, entre patrão e empregado, entre pais e filhos, entre lei e natureza.

Todos os conflitos têm origem no confronto das interpretações dos vários tipos e graus da lei. A lei, isto é, o conjunto dos princípios, das regras, dos preceitos, das tradições reconhecidas e das práticas definidas no Direito, é o que determina nas sociedades a possibilidade da sua existência. Sem lei não há sociedade. Procurando garantir-se pela lei, cada indivíduo procura a razão dos seus actos e julga inevitavelmente os actos dos outros. A sociedade, enquanto resultado da harmonia assumida pelos diversos indivíduos depende,  de a assumpção que cada um tiver feito da lei, estar ou não de acordo com o que cada outro indivíduo tiver, por seu lado, assumido. A origem dos conflitos é, para além dos interesses de cada um e da possibilidade de os manipular, a interpretação que cada um faz desse acordo.

Cada um, por seu lado, imagina e concebe esse acordo conforme a sua percepção, conhecimento e sabedoria.  Como se vê ao longo do filme, todos têm as suas razões subjectivas para orientar os seus actos, excepto o juiz que analisa as diferentes situações – divórcio, despedimento e morte do feto, descuido nos cuidados com o doente e a atribuição da responsabilidade parental– à luz da lei e não das verdadeiras razões que entre verdades e pequenas mentiras resultantes de balanços e necessidades de cada um, motivaram os seus actos.


Tudo são subtilezas de interpretação, pontos de vista em que o conflito entre interesse, dever e consciência, triangulam no íntimo das personagens gerando afirmações e contradições, certezas que se transformam em hesitações e um processo de acusação e culpa permanente que desfere juízos e acaba em perdões.

Dos padrões morais e éticos das personagens evolui-se para as reacções perante as situações e dessas reacções surgem, na relação com os outros, os conflitos. Um exemplo deste conflito é o de Razieh (Sareh Bayat) que perante a necessidade de sustentar sob juramento sob o Alcorão o que sabia ser uma mentira, recusou jurar, ainda que com isso tenha prejudicado o marido Hodjat (Shahab Hosseini) que seria o principal beneficiário da mentira.

O filme abre e fecha com o plano de um casal, Nader (Peyman Moaadi) e Simin (Leila Hatami), em processo de separação. Primeiro pedindo ao tribunal a separação que não é concedida e no fim com o mesmo casal separados num corredor à espera da decisão da filha Termeh (Sarina Farhadi) sobre com qual dos dois quer ficar. Tudo o que se passa entre estes dois momentos é uma permanente separação, como se cada um dos conflitos abertos fosse uma permanente separação não só entre as pessoas, mas também de si mesmos. Como se o direito, a lei e o juízo fosse o que separa e não o que é precisamente para unir.

terça-feira, 6 de março de 2012

Registos de Cinema XIII, Shame de Steve McQueen, 2011




Shame não é bem sobre a vergonha mas sobre o vício e o sentimento de culpa. Tenta a ideia de arrependimento mas deixa no ar a reincidência. Sendo sobre o vício é também sobre a solidão a que o vício conduz. É, alias, a principal consequência do vício: a solidão, pior, o isolamento. Não tanto pela vergonha mas mais pela impossibilidade de partilha. O isolamento é a impossibilidade de partilha. Nem só os vícios isolam, as mentiras, as simulações, as falsidades também isolam, no entanto, resultam duma chantagem social e emocional que envolve terceiras partilhas e por isso isolam só em parte. A natureza do vício é o anonimato e a solidão absolutas. É essa dimensão de absoluto que leva a que muitos não suportem os seus próprios vícios e sucumbam. Enquanto que as mentiras, as simulações e as falsidades descobrindo-se ou não criam correntes diferentes de apoio e repúdio que dissolvem o centro e a responsabilidade individual. O vício, não: é cerebral, calculado, meticuloso. Por isso, é perigoso. Desenvolve uma forma de vida paralela à realidade e absolutamente insuspeita. Desenvolve na pessoa uma segunda vida. Outra pessoa. É este o tema do filme.

Há no início uma rotina maquinal. Brandon (Michael Fassbender) tem uma vida sem sobressaltos, absurda, mas aparentemente satisfatória, dividida entre sexo mercenário, sexo ocasional, pornografia e auto-satisfação. Entra em cena a irmã, Sissy (Carley Mulligan), uma suicida compulsiva, emocionalmente desequilibrada, que procura protecção, família e um refúgio que a afaste de si própria e dos seus distúrbios, mas a quem ele resiste violentamente na defesa do seu território e do seu secreto vício. Egoísmo puro. Ela apela aos laços de sangue e ele é brutal no despeito e na rejeição. Ela telefona-lhe ininterruptamente “pedindo socorro”, mas ele, obsessivamente focado na sua espiral sexual, compulsiva e incontinente recusa atendê-la e ela, sozinha, acaba por se tentar suicidar novamente. Porém, ele salva-a in extremis, e perante o espectáculo de horror descobre a culpa e, aparentemente, o arrependimento. Fica-se na dúvida. O registo voyeurista do filme, torna-o inconclusivo e sem densidade. À excepção do título que acaba por ser um juízo moral, uma vez que no filme não encontramos propriamente um sentimento de vergonha, tudo pretende ser sem interpretação, uma espécie de vejam o que aconteceu, ainda que, o que aconteceu seja um arranjo conveniente sem verdadeira construção da personagem. Quem é Brandon?, de onde vem?, como chegou ao que chegou?, como vive com isso intimamente? Sobre isto nada. Descreve-se um anónimo, como se houvesse verdade num estereótipo.

Curioso seria abordar este tema a partir de dentro, do tormento da personagem, da origem e do progresso do vício, e o seu culminar, por si mesmo, e não provocado pela acção exterior da irmã que vem apenas dar um tom moral ao tema do vício que era suposto ser abordado e escalpelizado. Seguiu-se a via mais simples dos clichés, de um sentimentalismo superficial, estereotipado e pretensiosamente elegante. A estética consome-se sem poética.