terça-feira, 10 de julho de 2012

Morte: nós e os outros



Um estranho sentimento acode-nos perante a morte de alguém querido: para onde tenha ido esperará por nós. Foi apenas primeiro ou antes. Assim, parece. Perante a morte de alguém que fazia parte do nosso mundo, do rosário das nossas contas, que sabíamos ir encontrar a qualquer momento por muito tempo que já tivesse passado desde o último encontro, o seu tempo passou, quer dizer, deixou de estar nas malhas do tempo, conquistou a eternidade, onde, sem tempo, nos há-de ver como nós não nos conseguiremos jamais ver porque não nos concebemos fora do tempo onde a nossa essência habita, onde nós habitamos, mesmo não o sabendo.

Outra ocorrência, é a perspectiva de que esse que parte nos deixa a nós para se encontrar com aqueles que também já fizeram parte do seu e do nosso mundo, aqui, e que já partiram. Com amigos cá e lá o nosso coração hesita. Sempre a vida terrena é preferida, aparentemente e pela maioria, à vida eterna da qual apenas se pode esperar: nos transcenda, transborde e surpreenda. A partir da nossa forma e modo de pensar é inimaginável. Porém, todos partimos e, por isso, não valem a pena pesadas manifestações que protestem contra essa realidade. Melhor é aceitá-la com as forças que encontrarmos. A morte não é estúpida nem deixa de ser. É a garantia da vida e da sua renovação. A morte é como o nascimento. Um momento da passagem pela existência. É o último. Mas é o que se dá numa passagem da consciência actual de que a morte existe e de que a vida tem um sentido e uma realização, íntima e intransmissível, para uma plenitude ou um absoluto de que o pensamento humano dá notícia embora não possa desocultar. Pois se pudesse, já estaria nessa dimensão de que está separado por uma condição, uma contingência e uma limitação de que não conhece a razão. Diríamos que o mal é um mistério de que a bondade, a beleza e a verdade são a luz da redenção. O nosso coração, a nossa razão e a nossa imaginação nutrem-se do que reduz a acção do mal. O mal, episódico e evanescente, é apenas uma acção temporária, diria instantânea, de afastamento do bem, do belo e da verdade. Mas a bondade, a beleza e a verdade não nos permitem senão prepararmo-nos para a passagem de que a morte é o instante irrevogável.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Registos de Cinema XX, Les Neiges du Kilimandjaro de Robert Guédiguian, 2011




Podia chamar-se A sabedoria das boas almas, mas Robert Guédiguian optou por lhe dar o título homónimo da obra de Ernest Hemingway que Henry King adaptou ao cinema com Gregory Peck e Ava Gardner nos protagonistas. O equívoco não deixa de causar estranheza mas aparentemente é apenas uma provocação.

A sabedoria das boas almas é a sabedoria dos que sabem esperar, dos que olham, dos que respeitam intrinsecamente o outro, todo o outro, tudo o que é outro. Dos que sabem que o outro é o mesmo, o próprio, e tudo o que é em função do outro fica no mesmo, no próprio. De onde respeitar os outros é respeitar-se também a si mesmo.

O filme não pretende dizer que o homem é bom ou mau. Mas também não pretende reduzir as acções de cada um à circunstância e à contingência do meio ou da sociedade. Habita as personagens a liberdade de optar pelo modo como se pretendem realizar como seres humanos. E apesar de podermos entender as razões de cada um, também percebemos que aquilo que fazemos é uma decisão nossa e não um fatalismo ditado por condições exteriores, ou quando são porque a pressão existe, a vulnerabilidade é nossa e de mais ninguém. Mas assim sendo, cada um é perdoado, ou não, pela capacidade de perdoar de cada um. O estado, a lei, condena, cega como toda a justiça; mas o indivíduo perdoa, compensa, ajuda: ama.

É disso que trata o filme: a liberdade e o perdão como temas que carecem de uma iniciação interior.

 Trata a liberdade interior, como libertação como iniciação na liberdade que cada um não pode possuir, cingir ou limitar ao seu eu, ao contrário do livre arbítrio que, como vontade e até como reivindicação, é todo ele concentrado nos limites do eu, do indivíduo separado dos outros, a não ser que se adune à Liberdade, ao princípio da Liberdade.

É da noção de liberdade como libertação que surge o perdão como compreensão de que o outro, como o próprio, erra e esse erro não é definitivo nem trágico, mas parte de um processo que por vezes não se pode evitar mas no qual não se quer permanecer.

Os conflitos abertos pelo percurso de diferentes personalidades mostra as diferentes atitudes, as diferentes reacções, as perspectivas abrangentes do todo e as perspectivas unilaterais e delas conclui que a felicidade está na visão que é profundamente comprometida e persistente, quase obsessiva, mas simultaneamente desapegada, aparentemente distante ou apenas não intrusiva.

O filme explora estes conflitos e escolhe o ambiente sindical de que a personagem principal é uma figura destacada para acentuar os contrastes do gregarismo da militância e da afirmação individual, ou talvez sublinhar que mesmo a militância só se justifica pelo lado ideal, pelo lado que integra, engloba e acolhe todos numa mesma visão de princípios. A esse propósito Michel (Jean-Pierre Darroussin) cita Jean Jaurès e o idealismo revolucionário e a necessidade de fidelidade aos ideais. Por muito ingénuos que possam ser esses ideais é a intenção do ideal sem maldade que nos diz que a alma é boa e o erro em que possa incorrer o corrigirá quando dele tiver consciência.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Registos de Cinema XIX, Terraferma de Emanuele Crialese, 2011



Turistas e imigrantes encontram-se numa ilha. Por razões diferentes. Os primeiros chegam em segurança e vão para se divertirem; os segundos chegam no limite da sobrevivência em fuga à miséria e à guerra. Os primeiros enchem a ilha e transformam o espaço público e a economia. Os segundos escondem-se na ilha mas transformam e expõem o carácter dos seus habitantes.

A comunidade autóctone deixa de depender da actividade primária, a pesca, para investir numa actividade terciária, ou seja industrial: o turismo. A transformação troca no essencial, produção por serviços. A geração de riqueza passa a estar toda na paisagem natural e nos serviços que os locais podem prestar aos turistas. De certa forma perdem a sua autonomia e auto-suficiência, ou antes, a sua coesão comunitária. Uma comunidade habituada a alimentar-se e a passar de geração em geração o saber correspondente ao seu mester passa a receber de fora as tendências do que deve vender, passa a vender a sua própria casa, o seu tempo e a correr o risco de surgirem, com a consolidação da actividade turística, forasteiros que venham tomar conta do negócio e a breve prazo até expulsá-los (pagando bem) do seu lugar.

Perante a chegada de imigrantes do norte de África, a comunidade tende a impor as suas leis, que são as leis do mar, do socorro ao próximo e da partilha do pão. Porém, a ilha faz parte de um território nacional cujas leis são impiedosas com a imigração clandestina e, por isso, as suas leis são subjugadas pelas leis do Estado. O conflito entre a tradição e a consciência formada por essa tradição e o Estado e a obrigatoriedade do cumprimento da lei sob pena de sofrer consequências, levou à desobediência de uns e à cedência às conveniências de outros.

Terraferma é terra firme para os imigrantes que ali voltam a contactar com a realidade palpável, segura, firme. Para os habitantes da ilha é o seu porto seguro no meio do mar. Para os turistas é um lugar de lazer, para sair do tempo e do espaço convencionais e habitarem uma terra firme mas irreal durante umas semanas. Também poderíamos chamar-lhe terra fechada, enclausurada, isolada, perdida do tempo e do espaço, perdida do mundo, um lugar onde se nasce e se morre sem se ter chegado a contactar com a realidade exterior. Um lapso de tempo, um lugar irreal.

Ainda assim, a presença humana transforma a vida natural numa vida mental, espiritual. Numa comunidade como a daquela ilha, os problemas humanos são observados e vividos à luz de princípios. Os princípios implicam uma prática, não se ficando pela indiferença e pelo passar ao lado como se fossem problemas que não nos dizem respeito. Mas também, perante a possibilidade de tirar partido da situação e já com o aviltamento que o dinheiro trás a quem não vive os princípios, logo se cindiu a comunidade entre os que querem o progresso e o turismo e entregam ou não salvam os imigrantes à deriva e os que querem continuar a viver do mar e recusam os horizontes do progresso mas correm todos os riscos na coerência da sua ética e salvam e escondem os imigrantes clandestinos.

É certo que pouco se consegue em ser contra o tempo e as suas tendências. A maioria é sempre gregária, cobarde e sem alma. Os que resistem individualmente são os heróis que estes tempos abominam. Mas nessa heroicidade está aquilo que resta da nossa humanidade. Por muito ineficiente que seja.

Registos de Cinema XVIII, The Best Exotic Marigold Hotel de John Madden, 2011



Por qualquer razão que deve fazer parte da natureza humana, sempre se disse, mais ou menos isto: um dia parto para uma ilha e deixo-me lá ficar. O sentimento de evasão de um mundo a que já não sentimos pertencer, ou a necessidade de procurar um lugar onde nos encontremos connosco próprios, alimenta a ideia de uma viagem transfiguradora. A ideia de recomeçar, de apagar o passado e recomeçar tudo de novo, carece de um novo lugar, de uma nova comunidade, ou até de um certo anonimato.

The Best Exotic Marigold Hotel for the Elderly and Beautiful em Jaipur na Índia surgiu a um grupo de reformados ingleses com diferentes histórias e por diferentes razões, como um lugar de sonho onde podiam evadir-se uns temporariamente, outros definitivamente. Imaginar uma viagem, é imaginar um ideal, talvez um paraíso. Um sentimento interior de esperança cresce, e as palavras fazem nascer o sonho. Quem não quereria ir para um lugar chamado The Best Exotic Marigold Hotel?, ainda por cima depois de ver imagens melhoradas em photoshop por um jovem sonhador que, no trilho do pai, pretende fazer renascer uma glória, que já no passado era só um desejo nunca realizado, um exótico e acolhedor hotel?

Esclarecendo: Sonny (Dev Patel) vive e é co-proprietário com a mãe e os dois irmãos de um antigo hotel que depois da morte do pai entrou num lento processo de ruína. Sonny decidiu promove-lo como destino turístico para a terceira idade e publicou fotografias melhoradas em computador do que iria ser o que vendia como já sendo. Pretendia, assim, ir fazendo a renovação do hotel com as próprias receitas geradas pelos hóspedes e com o processo a correr, então, tentar um financiamento para as obras de fundo. Os hóspedes chegam e deparam-se com um cenário oposto às suas expectativas e cada um à sua maneira foi rejeitando e integrando-se naquele dia a dia em que o jovem Sonny os procurava envolver e fazer sonhar apesar das evidências: sujidade, mau estado, comunicações cortadas, refeições péssimas, etc...

Cada um acabou por ir-se adaptando e procurando motivos para ali permanecer criando laços com a cidade, com as pessoas, com os ambientes e, de algum modo, realizando as expectativas que tinham criado antes da decepção da realidade lhes cair à frente.

Não obstante o carácter comercial do filme há uma densidade nalgumas personagens que, ao contrário de outras, é de assinalar. O que faz correr cada uma delas, porém? O filme é sobre a velhice e a solidão. Mas uma velhice e uma solidão à procura de uma centelha que reacenda a esperança em vez de apenas de deixarem mergulhar no desespero e desistirem. Apesar de se passar no verão indiano, o filme é  sobre o Outono ou, como lhe chamou José Régio: a colheita da tarde. As cores são quentes e tardias.

De que vivem os mais velhos: da esperança de não terem perdido totalmente uma juventude que não se lembram do dia em que partiu; das memórias do tempo que se foi mais as pessoas que foram com ele; das alegrias e das frustrações sem remédio e sem regresso; de uma certa persistência da fé que nunca perderam em algo de fundamental das suas vidas; da sensação do que perderam mas permanece vivo neles; e da resistência que sabem poder manter contra a crueldade silenciosa do tempo que passa irremediavelmente.

A perspectiva de que o tempo passa e nos faz passar também, impõe decisões antes que seja tarde demais. É essa urgência que se torna evidente nas personagens de The Best Exotic, cada uma procurando realizar algum objectivo antes que a morte lhe bata à porta. Tudo se passando sem correrias, sem atropelos, num misto de cinismo e objectividade, ou se quisermos de humor e lógica tão de sabor britânico. O humor está na capacidade de se exporem sem se imporem e sem moralizarem; a racionalidade está forma como conduzem os seus passos não obstante aceitarem o destino.

Há uma força interior em cada personagem, e na sua obstinação tranquila, que faz do que poderia ser mais detestável no carácter, um tropo compreensível. E essa força interior é também musculada pela urgência de viver o que há ainda para viver. Há um ditado que procura dar o mote da obra: Everything will be alright in the end, or it's not the end yet.”

terça-feira, 24 de abril de 2012

segunda-feira, 23 de abril de 2012

domingo, 15 de abril de 2012

Registos de Exposições II, BES Photo 2012, Cia de Foto, Duarte Amaral Neto, Mauro Pinto, Rosângela Rennó, CCB 2012


Quatro possibilidades de registo, outros tantos conceitos de fotografia. Como arte?


1. Duarte Amaral Neto (Lisboa) apresenta um trabalho de re-fotografia onde induz uma narrativa a partir de palavras chave que redireccionam a mente para um contexto conhecido, a 2.ª Guerra Mundial, a partir de despojos de um acervo de um familiar datados do princípios dos anos 30. Pela alteração da legenda toda a infidelidade potencial do registo fotográfico se revela. A grande qualidade da verosimilhança desfaz-se com este exercício de manipulação que demonstra que a fotografia é impossível como garantia de narrativa do real enquanto facto. A fotografia será sempre parcial e manipuladora e as suas seduções são a sedução enganadora do lado bom que esconde o mau ou do mau que se esconde no bom.

Ao acervo fotográfico acrescentam-se a exposição de objectos envelhecidos que não são fotografados e, por isso, complementam com dados corpóreos a dimensão do tempo que passou concluindo assim a encenação da história e a indução da mentira no carácter memorialista, de registo documental que se presume sério e científico. Mas a mentira não nega a arte, muito até pelo contrário como explicou Óscar Wilde em “O declínio da Mentira”.

Por isso, abre uma discussão sobre o valor artístico da fotografia já que a mentira tem o seu préstimo na arte enquanto ideia de ilusão ou, pelo menos, de não factualidade. Se pela técnica implícita a fotografia, como o cinema, é sempre registo e, por sua natureza, forma documental, a questão está em saber se a ficção do que se supõe factual e a possibilidade de enganar por indução e sugestão, são suficientes para tirar a fotografia do domínio da verosimilhança?, ou, dito de outra forma, se a memória na fotografia é mimesis?




2. Cia de Foto (São Paulo) grupo brasileiro com preocupações teóricas e que pretende dar respostas concretas, ou seja: dizer o que é a fotografia. E isso é o que está entre dois tópicos: o escuro e o estático. O escuro como recusa da luz ou o recurso à luz mínima (mesmo que manipulada) que permita a eclosão da superfície; e o estático como impossibilidade em si mesmo já que tudo está num devir.

A ideia de apresentar o contrário da fotografia mas não deixando de recorrer ao que é, porque tem de ser, a fotografia. Nem toda a interrogação da arte conduz à arte em si. O que é interrogar a fotografia se nessa interrogação ela é o que queria negar, ou seja, para quê recusar a luz e a instantaneidade se é isso que minimamente tem de acontecer para que a fotografia aconteça e tentar fazer dos limites disso uma teoria sobre a fotografia afirmando que é o que não é?

Por fim, há o que a fotografia é, o instantâneo, o que se capta, unilateralmente é certo, mas o que se capta com precisão com rapto, com oportunidade. A longa preparação de palcos e luzes poderá ter um efeito cénico de grande beleza gráfica e até pictórica, mas será isso a fotografia?


3. Mauro Pinto (Maputo), jovem fotógrafo moçambicano, apresenta uma série de fotografias intitulada: “Dá licença”. O fotógrafo capta o momento, a permanência de espaços domésticos abandonados, mas a que a cor, a disposição dos móveis, as texturas e a profundidade de campo, dão uma presença impressiva e quase pulsante. De todos os trabalhos é talvez aquele que fica mais fiel ao objecto da fotografia. O registo de uma realidade tal qual ela se apresenta e retirando dela todo o seu potencial expressivo. Dá licença é uma intromissão na intimidade de um lar, ou de vários, e por isso se pede licença, para precisamente poder permanecer sem ser intruso.

Curiosamente, Dá licença não se reduz à boa educação de pedir licença à família, no caso vertente, da suposta família que habita ou habitou o espaço a fotografar. A família já não habita. Então Mauro Pinto pede licença a quem? O oficio de fotógrafo impõe-lhe, talvez, essa ética que a fotografia, essa janela indiscreta, esse olho que regista maquinal e amoralmente o que deve e o que não deve registar, precisa de respeitar. Uma moral que lhe dê cidadania, porque a realidade não está aí para ser violentada mas para ser respeitada. Dá licença é, sobretudo, uma forma de consciência de que a máquina que apenas dispara precisa de conter o ímpeto, a vontade e a legitimidade do atirador, não pode estar descomprometida dos outros e da sua legítima privacidade, nem da própria realidade enquanto expectativa de que todos partilhamos. No “Blow up” de M. Antonioni mostra-se bem essa natureza intrusiva e inconfidente da fotografia: o inocente registo fotográfico de um jardim vem a revelar um crime passional, privado e secreto. Antonioni quis aqui, na nossa perspectiva, mostrar como a fotografia por um lado actua sem moral e sem preconceitos mas por outro invade o domínio do secreto ou do privado que se esconde tanto da luz imediata e meridiana como na luz baça e enevoada.


4. Rosangela Rennó (Rio de Janeiro), apresenta um conjunto de paisagens sob o título Lanterna Mágica, em que o centro ou uma grande porção central da fotografia está queimada, por efeito de uma sobre exposição do negativo mesmo antes da revelação manual da fotografia. Um processo oposto decorre quando o mesmo negativo é projectado  por projectores dos finais do século XIX e princípios do século XX onde pormenores da zona sobre-exposta podem ser observados.

O trabalho de Rosângela Rennó é, sobretudo, uma investigação sobre as técnicas e os processos da fotografia mantendo uma estreita conexão com uma investigação filosófica sobre o lugar da fotografia no panorama do conhecimento e das artes.

Neste tipo de discurso, fica-se sempre com um certo sabor a pouco, uma vez que o que se espera dos artistas é que resolvam os problemas da arte que querem expor e não transportem para o público a sensação da insolubilidade das questões trazidas à partilha com quem não as pode resolver. Fica-se com a sensação que se tratam de falsas questões e cuja promoção deixam a arte num impasse porque nem estes resolvem nem deixam outros, talvez, resolver. A não ser que mudem de problemática e abandonem os caminhos que levam a nenhures.


5. O que é a fotografia? Esta a resposta que cada fotógrafo deveria procurar dar. Toda a obra de arte nas suas diferentes formas e realizações tem implícita a resposta a esta questão. Não querer responder não quer dizer que não se está a responder. Cada um dá a resposta que pode e sabe e cada outro compreende-a ou não. Mas, na verdade, o espelho da arte, é o espelho de nós próprios e sem querer responder, enquanto artista ou como tal assumido, cada um deles responde. Pode a resposta não ser satisfatória, pode não agradar, pode ser má e superficial, mas é a resposta que é dada. Outras serão melhores, mais profundas e mais absolutas.

Arte que não interrogue os seus princípios não é arte. Pode a fotografia almejar um sistema de princípios que se interroguem, e da multiplicidade de aproximações à fotografia encontrar uma redução que albergue uma teoria da fotografia? É a fotografia uma arte apenas porque representa uma experimentação que se baseia na subjectividade de cada um?

Qual a musa da fotografia?

sábado, 7 de abril de 2012

Registos de Cinema XVII, Tabu de Miguel Gomes, 2012



1. Monte Tabu

Como o Paraíso, também não sabemos onde seja o Monte Tabu. O Paraíso é a idade de ouro, os melhores anos das nossas vidas, o tempo dos sonhos vividos: o tempo antes de haver tempo. O Paraíso Perdido é a idade das sombras, o tempo de penúria e o tempo de castigo pelo mal que fizemos, que deixámos fazer ou que não evitamos que se fizesse.

O filme é um regresso ao passado, a procura de apaziguar os sobressaltos de uma vida que se sente em dívida com os outros e consigo mesma. A procura de fazer as pazes, ou simplesmente, não deixar que tudo fique ignorado para sempre.

Poder-se-ia ter chamado ao primeiro capítulo Purgatório e ao segundo Do Paraíso ao Inferno, ou mesmo, Expulsão do Paraíso, pois, afinal, a convicção geral das personagens é religiosa.

O filme recusa o real sem ideal, não quer ser verosímil, quer invocar, narrar, encantar. Procura a beleza da criação artística e não a realidade tal qual é vivida. As suas personagens vivem mergulhadas numa ficção que é mais autêntica que qualquer comprovada ou factual realidade. Não vivemos todos numa ficção, que é a recriação das nossas vidas sonhadas? Por isso, um filme e uma música comovem Pilar (Teresa Madruga) que vive sozinha, recusando a intimidade com Luís, um pintor triste e velho, que a admira e pinta para ela, mas de quem ela nada mais quer senão a companhia para ir ao cinema.

2. Sinopse

Prólogo

Um explorador intrépido e decidido aventura-se pelo mato da savana de Moçambique. É um amante desesperado que corre para a morte e nada podendo fazer para recuperar a sua amante, se entrega a um crocodilo para ser devorado sob o olhar da amante defunta.

Parte I – Paraíso Perdido

Pilar vive em cuidados com a vizinha Aurora (Laura Soveral), uma mulher velha e rica, viciada em jogo de casino, que vive sozinha com a empregada, Santa (Isabel Cardozo), que acusa de lhe fazer macumbas e a prender em casa, e que raramente recebe visitas da única filha que tem, mas vive no Canadá e pouca atenção e carinho lhe presta.

A morte de Aurora é antecedida de um último de desejo de falar com Ventura (Henrique Espírito Santo) que Santa lê na mão de Aurora. Após o enterro de Aurora, Pilar, acompanhada de Ventura ouve, num centro comercial, a história escondida, silenciada e reveladora do pesadelo e da loucura de Aurora.

Parte II – Paraíso

Aurora (Ana Moreira), filha de um colono vive uma fazenda em Moçambique e é uma infalível caçadora. O marido (Ivo Müller), trabalhava grandes extensões de cultura de chá e ausentava-se amiúde. Aurora vivia num paraíso rodeada de empregados e de entretenimentos ociosos. Porém, a sua natureza bipolar foi-se revelando e uma inquietação nervosa estampava-se-lhe no rosto. É então, nessa fase, que surge Gianluca Ventura (Carloto Cotta) com outros amigos e que por ali trabalham e formam uma banda de música.

A tensão entre Aurora e Gianluca vai-se acentuando, e ambos acabam por propiciar encontros amorosos que ambos consideram criminosos pelo facto de Aurora estar grávida e aquela relação não ter futuro, além de estarem a enganar quem lhes merecia toda a confiança. Até à separação definitiva, depois de descobertos, ocorreram peripécias várias entre elas uma longa separação poderia ter deixado tudo no segredo mas o regresso de Gianluca tudo precipitou e conduziu à tragédia e à vergonha.

3. Da história

Histórias antigas que ensombram as vidas actuais . Histórias que se agigantam com a distância do tempo e do espaço e fazem de pessoas comuns personagens épicas, aquelas a quem estão reservados os grandes feitos e os grandes pecados. Personagens que, apesar da inquietude, parecem agora repousar em águas tranquilas, águas que se conhecem e não fariam suspeitar daquilo que fizeram,  aquilo que nos espanta e, mais grave, nos escandaliza. E depois, quando olhamos para essas personagens não conseguimos conceber como podem elas ter feito o que fizeram, não concebemos que a mesma pessoa que ali está, tão quieta e tão distante de outras loucuras, tenha sido a que fez o que fez. Aí, começamos a suspeitar que em cada um de nós pode habitar outro de nós, adormecido ou expectante, e esse outro divide-nos e desencaminha-nos e não mais nos deixará, não nos devolverá a ingenuidade perdida, essa forma de olhar o mundo e de acreditar nos outros que uma vez perdida não mais regressará para nos apaziguar e devolver a esperança, inquinando todo o futuro.

Os erros da juventude pagam-se na velhice. Mas pagam-se porque não nos largam, porque se tornam parte de nós próprios e quanto mais os abominamos mais eles são a nossa natureza. Aurora era desde nova um espírito alvoroçado e o seu permanente nervosismo, e a sua incessante inquietação, denunciavam um comportamento bipolar preocupante. O isolamento e a solidão fizeram o resto. Perante a manifestação do olhar de Gianluca Ventura que sobre ela repousava com insistência acabou um dia por se lhe entregar sem reservas, sem pudor e sem olhar a outras consequências. O tempero não foi apenas o picante do adultério, mas sim o facto de Aurora estar grávida, estar no início da gravidez e isso, de algum modo, condenar qualquer harmonia futura entre eles. Há coisas que pela destruição que provocam nunca permitirão qualquer reconstrução sólida e duradoura. Primeiro, porque matam o que está à volta e, depois, porque torna os amantes reféns um do outro pelo bem e pelo mal que se fizeram, e porque a sua intimidade é o seu segredo e nada o pode apagar ou fazer esquecer.

Esta é a história que devoramos ao longo de mais de uma hora depois de termos passado a primeira hora de volta de um mundo em derrocada, sem esperança, numa Lisboa moderna triste, desencantada e envelhecida, não só pelas personagens sós, mas pelo próprio claro escuro do preto e branco com que o autor tinge a tela e que é a sua visão da velhice ou da corrupção.

4. A estrutura narrativa

O filme progride através do diálogo, na primeira parte, onde as personagens vivem tristemente, com chuva e trovões mais um inverno da vida, já sem qualquer apego, esperança nem mesmo desejo de viver, arrastando-se todas sem alma numa assistência mútua e complacente; e, na segunda parte através de uma narração em voz off (apenas alterada na leitura das cartas em que cada um lia a sua), onde a história do passado, a tal idade de ouro que culminou em tragédia, é contada da mesma forma que as histórias de encantar são contadas às crianças, nessa idade de ouro que é a da infância e da ingenuidade.

O filme tem permanentes notas humorísticas. Discretas é certo, mas permanentes. Miguel Gomes tem esse sentido do sério e do ridículo e a sua pendular variação dá ao tom grave do filme um contraponto de leveza. Além disso, tem a beleza do preto e branco e das nuances do preto e branco, tanto no Portugal triste da velhice de Aurora, Pilar e Santa, como no Portugal alegre e radioso das terras de África onde Aurora e o marido, e Gianluca e Mário vivem tempos felizes.

Disse Miguel Gomes que não há um tema central e, de facto, há muitas histórias implícitas ou embutidas, que vão sendo apontadas e esboçadas e, sem juízos morais nem correcções políticas, fazem do filme uma história de amor e de dor, num ambiente moral próprio e sobre o qual não há sociológicas recriminações. Do que se trata é de pessoas e das suas paixões, crenças e mitos.

5. O crocodilo

Finalmente, a figura transversal de toda a trama: o crocodilo. O misterioso crocodilo: o crocodilo “dandy”, como lhe chamou Aurora. O crocodilo assume um papel mitológico por assim dizer. Primeiro, porque é a um crocodilo que um amante desesperado se entrega para ser devorado sob o olhar da amante defunta numa espécie de prólogo que antecede as duas partes do filme. Segundo, porque o marido de Aurora lhe oferece um crocodilo bebé no princípio das suas vidas de casados. Terceiro, porque o crocodilo fugiu e foi Gianluca Ventura que o encontrou no seu jardim. E, finalmente, porque após uma segunda fuga, Aurora foi logo procurá-lo ao jardim de Gianluca, decidida a provocar aí o seu primeiro encontro amoroso e o princípio do idílio e da tragédia.

Ora o crocodilo é um predador e um caçador. Como Aurora. De algum modo, o crocodilo, na sua quietude, está sempre preparado para um ataque mortífero. Como Aurora. Aurora chamou-lhe Dandy quando ele fugiu para a casa de Gianluca Ventura. Seria Aurora também uma dandy, ou estaria apenas possuída pelo espírito do crocodilo?

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Registos de Exposições I, Nikias Skapinakis Presente e Passado 2012-1950, CCB, 2012



1. CCB, cinco de Abril de dois mil e doze.
Nikias Skapinakis, muitos anos a ver de longe e hoje a possibilidade de ver de uma vez mais de cinquenta anos de pinturas e desenhos.

Numa primeira percepção, da retrospectiva que o próprio curou e cuidou, a questão geracional que está na base do seu caminho: a opção pela figura e pelo figurativo e a recusa do abstracto por moda, ou oportunidade, ou até, como se sugere, por obediência à crítica. Ficamos, assim, na figura, na figuração e no figurativo.

Numa segunda percepção, percebemos que toda a pintura de Nikias Skapinakis se contem na mancha de cor, é a mancha, uniforme e forte que mostra a figura. Uma cor sem gradações, uma cor de campos preenchidos, firmemente delineados, que de algum modo antecipa, mas seguramente é contemporânea na Pop Art , movimento que surgiu em Inglaterra e nos Estados Unidos no final dos anos 50 e que usava a linguagem gráfica da banda desenhada e dos anúncios na pintura (Roy Lichtenstein e Andy Wharol, por exemplo).

Numa terceira percepção, a temática de Nikias Skapinakis. Há uma permanente encenação ou teatralização na relação entre as figuras quer sejam humanas, animais, vegetais ou minerais. Os temas de Nikias são clássicos: naturezas mortas, paisagens naturais, cenas mitológicas com mulheres e animais, tertúlias de homens e de mulheres.

2. A singeleza do jogo da linha, diria contorno, e da cor, diria mancha, estabelece uma teatralidade, ou melhor, uma encenação como pré-teatralidade que relaciona entidades, as põe em conflito e em harmonia. Essas entidades são-no precisamente para que se possa estabelecer entre elas conflitos, oposições, continuidades e harmonia. As entidades são uma espécie de individuação metafórica de corpos minerais ou vegetais ou animais que se assumem como personagens potenciais na geografia dos quadros.

As posições dos corpos, enquanto disposições da alma, a direcção do olhar, enquanto ausência de ver físico, o “conflito” das cores, enquanto expressão da solidão individual, a ausência de fundo onde há pessoas e animais, e a ausência de pessoas e animais onde há paisagem ou contexto vegetal e mineral, sublinham o carácter melancólico que o próprio exprimiu verbalmente.

Porém, mais do que melancólico, exprime uma ruptura entre o que se move e o que não se move. Diríamos entre o humano e o natural, uma vez que o animal pela via simbólica e cultural da mitologia tratado como qualidade, atributo ou espelho do humano. A ruptura do humano com o mundo, visto como contexto, cenário ou palco, é talvez uma das mais evidentes expressões do pessimismo que na obra de Nikias tem sido considerado melancolia. Ora a melancolia é, ao contrário, o sentimento de perda de um mundo idílico em que o humano se integrava, por isso, invoca a harmonia do homem em plena harmonia com o mundo natural. Na obra de Nikias, esses dois mundos estão irremediavelmente separados. E a tristeza que se sente, não é melancólica, mas antes sentimento de perda irremediável.

3.Três notas


A primeira sobre as pinturas de tertúlia ou de grupos (de homens ou de mulheres, curiosamente também nunca se misturam). Em Botequim (1973) está tragicamente expresso o presságio feminino de que o mundo que se perdeu, que talvez tenham sido os homens a fazê-lo perder-se. Três cálices sobre a mesa, três mulheres entreolhando-se, como quem esperam por alguma coisa sem grande esperança, braços cruzados, pernas cruzadas, repousando sem sonhar.


A segunda sobre os desenhos de paisagem sobre papel craft. Se toda a pintura de Nikias é baseada na mancha – contorno e cor – já os trabalhos de desenho revelam um traço e uma  capacidade de representação de grande profundidade, mesmo em sentido literal, profundidade de campo, que revela uma dimensão do olhar que nas manchas sem gradações da pintura ficam por revelar.

A terceira nota é sobre a singularidade do caminho de Nikias no contexto português onde o figurativismo reagindo às correntes do abstraccionismo, recebeu um importante impulso e uma certa legitimação pelos novos caminhos abertos pela Pop Art norte americana e britânica. Esse impulso, porém, não conduziu o artista português com origens gregas de permanecer fiel à pintura como arte distinta da banda desenhada e de outras aproximações mais gráficas e mundanamente eficientes mas mais irremediavelmente superficiais.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Registos de Cinema XVI, Un Amour de Jeunesse de Mia Hansen-Løve, 2011



1. Um amor de juventude que não se sustenta porque é demasiado absorvente para ser vivido na adolescência e que, permanecendo absorvente nos primeiros anos da vida adulta, continua impossível e a ele têm de renunciar os amantes para que não se consumam totalmente, esperando por anos de serenidade para se reencontrarem definitivamente.

A ideia que subjaz em toda a história é a de um amor que não se corrompe e permanece na mais profunda idealidade e ternura. Porém, para que não se corrompa, é transposto do palco da vida onde tudo se corrompe com o tempo, para o altar da privação onde tudo é memória e possibilidade.

Enquanto vive em potência, como esperança, como algo que não se deixa consumir, alimenta-se da dor da privação, da voluntária privação que parece salvaguardar um bem maior, um bem que projectado no futuro quase parece projectar-se para além do real tornando-se ideal, ou seja, transcendente.

Atendendo ao que no filme não é dito, de algum modo a juventude e a sua generosidade ingénua é o padrão do mais fogoso e mais místico amor.

2. Na moral da obra, o amor suplanta a infidelidade e a infidelidade acaba por ser o factor de acalmia para a incendiada paixão que não se apaga. No reencontro entre os amantes, não obstante ela, Camille (Lola Créton), estar comprometida com o marido, Lorenz (Magne-Håvard Brekke), tudo se retomou como se nem se tivesse interrompido. A intimidade era quase natural e a distância não existia. Porém, perante o prelúdio de uma nova alienação Sullivan (Sebastian Urzendowsky) impõe novo afastamento.

Depois de uma reacção dolorosa Camille regressa a Lorenz e parece viver feliz na resignação, porque sublima o amor e transporta-o para um outro estado em que permanece dentro de si mais secreto e íntimo que nunca. Lorenz que é a figura que a impede de se perder e lhe dá segurança, é para ela suficientemente indiferente para não o confundir no seu amor e lhe permitir viver secretamente e sem perturbação o seu amor enquanto sonho, enquanto ideal.

3. No reencontro e nas saídas na sequência desse reencontro, Camille, procura as diferenças que a separam de Sullivan e conclui que não sabe porque o ama tanto e tão definitivamente. Sullivan, sempre aflito e preocupado com o que pode perder por ser possuído por aquela avalanche amorosa, sabe em cada momento afastar-se embora, depois, nada mais perca se não a presença e a companhia daquilo que verdadeiramente ama: Camille.


4. Um filme em que a posse e a separação são pólos de uma visão jovem mas autêntica, de um amor sem manhas, sem truques, sem oportunismos, sem aviltamento do outro. Um amor puro, duradouro e resistente a tudo. Um filme em que a ingenuidade não se perde, ou não se deixa perder, e parece até encher a alma redescobrindo a alegria.

Num certo sentido, quase poderíamos dizer, um filme religioso, porque um filme de amantes que acreditam, que se correspondem e que não precisam da evidência da presença para permanecer em estado de graça: amantes e triunfantes.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Registos de Cinema XV, Coriolanus de Ralph Fiennes, 2011



Coriolanus de Shakespeare, em versão contemporânea de Ralph Fiennes que co-assina o Argumento, realiza e representa o papel principal ao lado de Vanessa Redgrave (Volumnia), Jessica Chastain (Virgilia) e de Gerard Butler (Tullus Aufidius), é uma obra de registo híbrido. Nem recria a Roma do séc-V a.c., nem moderniza o discurso das personagens fazendo-as representar como no século de Shakespeare apesar de filmarem manifestações com telemóvel e seguirem a guerra em directo nas notícias da televisão.

Há outro aspecto híbrido para além do registo, que é o cenário e o tempo. Um lugar que também se chama Roma ao lado de umas terras de um povo que também se chama  Volscos, ou seja, que nem é Roma nem são os Volscos e, por isso, são não-lugares de uma acção totalmente desenraizada e inverossímil, cruzados com uma sensação de que não há um tempo dos acontecimentos, quer dizer, que não há um devir histórico, e tudo se passa numa pura arbitrariedade, fora do tempo e fora da realidade.

Tudo isto é possível porque se trata de um texto de Shakespeare. E um texto de Shakespeare, mesmo mergulhado na estranheza de estar fora do tempo e do espaço, fora de um concreto devir, trata de assuntos que não carecem dessa situação. Trata do modo como cada um se deixa dominar pelas paixões e como isso o conduz aos conflitos de que não pode dizer-se vítima mas sim autor.

Nas personagens de Shakespeare prevalece a liberdade individual na escolha do bem e do mal, do belo e do feio, da verdade e da mentira. São as paixões a que cada um se entrega e que o podem, ou não, dominar, que lhe definem o carácter e o destino: porque a vida não é uma ficção sem consequências, mas sim uma realidade que se projecta a partir de cada um e implica conflitos que não se evitam por vontade. A racionalidade no homem, a racionalidade do espírito, sobrepõe-se ao voluntarismo, aliás, submerge-o. O homem nada pode contra o poder das paixões que o incendeiam, consomem e acabam por destruir.

O moralismo é esvaziado pelo provérbio. Shakespeare não esconde as personagens num discurso moral, pelo contrário, expõe-nas ao saber decantado dos provérbios, que nos ensinam que para além do que presumimos saber, há um diabo que nos troca as voltas, e nos acaba por fazer saber que os avisos não eram juízos morais que a nossa ousadia e atrevimento pretenderam contestar, mas provérbios que o tempo já testou e que não vale a pena provocar. O avaro é vítima da avareza, o curioso é vítima da curiosidade, o cobarde é vítima da cobardia, etc.

Em “Coriolanus”, o auto-investimento do poder e o seu exercício sem contemplações, sem paciência, e sem partilha com os outros, conduziu Caius Marcius à situação frágil e desprotegida dos que estão sós e rodeados pela inveja, o medo e a vergonha dos fracos. Foi-lhe fatal.

segunda-feira, 19 de março de 2012

Registos de Cinema XIV, Jodaeiye Nader az Simin (Uma Separação) de Asghar Farhadi, 2011



Há, actualmente, um cinema que não se corrompe na tentativa de manipulação do espectador, que não tenta manipular as suas emoções, nem ser moralista quanto às razões da acção de cada um. Vimos isso em O Segredo dos Teus Olhos, em Num Mundo Melhor (Hævnen) ou em Le Havre e em muitos outros cinemas fora da influência dos modelos de produção estandardizada, industrial e dirigidos às massas enquanto massas.

Este cinema, aparentemente de baixo orçamento, enraíza-se numa tradição poético-literário-dramatúrgica em que a imagem nem se autonomiza, nem se sobrepõe ao desenvolvimento do drama. É um cinema que vive da representação e, por isso, da palavra e da sua pausa, o silêncio. A imagem passa despercebida enquanto intenção estética dando, não obstante, a cor dos ambientes e gerindo os planos com a intenção de fazer sobressair a expressão, a eclosão da palavra e da sua forma de ser soprada, dita, proferida. Na fotografia (cenário), também, de Asghar Farhadi apesar da profundidade de campo dos magníficos planos de conjunto onde a geografia dos espaços, das personagens e das suas relações em conflito se encontram, predominam os grandes planos das personagens, fazendo sobressair a pessoa, essa através da qual soa, a voz e o carácter.

É do carácter que o filme trata, ou seja, da forma como cada um se rege por princípios que assume e mantém, ou que adapta por conveniência de outras causas, ou que manipula por puro interesse próprio. Todas as personagens com capacidade de decisão são confrontadas com a sua consciência e com o dever moral, uns, e imperativo ético, outros, num desenrolar de vários tipos de conflitos: entre marido e mulher, entre patrão e empregado, entre pais e filhos, entre lei e natureza.

Todos os conflitos têm origem no confronto das interpretações dos vários tipos e graus da lei. A lei, isto é, o conjunto dos princípios, das regras, dos preceitos, das tradições reconhecidas e das práticas definidas no Direito, é o que determina nas sociedades a possibilidade da sua existência. Sem lei não há sociedade. Procurando garantir-se pela lei, cada indivíduo procura a razão dos seus actos e julga inevitavelmente os actos dos outros. A sociedade, enquanto resultado da harmonia assumida pelos diversos indivíduos depende,  de a assumpção que cada um tiver feito da lei, estar ou não de acordo com o que cada outro indivíduo tiver, por seu lado, assumido. A origem dos conflitos é, para além dos interesses de cada um e da possibilidade de os manipular, a interpretação que cada um faz desse acordo.

Cada um, por seu lado, imagina e concebe esse acordo conforme a sua percepção, conhecimento e sabedoria.  Como se vê ao longo do filme, todos têm as suas razões subjectivas para orientar os seus actos, excepto o juiz que analisa as diferentes situações – divórcio, despedimento e morte do feto, descuido nos cuidados com o doente e a atribuição da responsabilidade parental– à luz da lei e não das verdadeiras razões que entre verdades e pequenas mentiras resultantes de balanços e necessidades de cada um, motivaram os seus actos.


Tudo são subtilezas de interpretação, pontos de vista em que o conflito entre interesse, dever e consciência, triangulam no íntimo das personagens gerando afirmações e contradições, certezas que se transformam em hesitações e um processo de acusação e culpa permanente que desfere juízos e acaba em perdões.

Dos padrões morais e éticos das personagens evolui-se para as reacções perante as situações e dessas reacções surgem, na relação com os outros, os conflitos. Um exemplo deste conflito é o de Razieh (Sareh Bayat) que perante a necessidade de sustentar sob juramento sob o Alcorão o que sabia ser uma mentira, recusou jurar, ainda que com isso tenha prejudicado o marido Hodjat (Shahab Hosseini) que seria o principal beneficiário da mentira.

O filme abre e fecha com o plano de um casal, Nader (Peyman Moaadi) e Simin (Leila Hatami), em processo de separação. Primeiro pedindo ao tribunal a separação que não é concedida e no fim com o mesmo casal separados num corredor à espera da decisão da filha Termeh (Sarina Farhadi) sobre com qual dos dois quer ficar. Tudo o que se passa entre estes dois momentos é uma permanente separação, como se cada um dos conflitos abertos fosse uma permanente separação não só entre as pessoas, mas também de si mesmos. Como se o direito, a lei e o juízo fosse o que separa e não o que é precisamente para unir.

terça-feira, 6 de março de 2012

Registos de Cinema XIII, Shame de Steve McQueen, 2011




Shame não é bem sobre a vergonha mas sobre o vício e o sentimento de culpa. Tenta a ideia de arrependimento mas deixa no ar a reincidência. Sendo sobre o vício é também sobre a solidão a que o vício conduz. É, alias, a principal consequência do vício: a solidão, pior, o isolamento. Não tanto pela vergonha mas mais pela impossibilidade de partilha. O isolamento é a impossibilidade de partilha. Nem só os vícios isolam, as mentiras, as simulações, as falsidades também isolam, no entanto, resultam duma chantagem social e emocional que envolve terceiras partilhas e por isso isolam só em parte. A natureza do vício é o anonimato e a solidão absolutas. É essa dimensão de absoluto que leva a que muitos não suportem os seus próprios vícios e sucumbam. Enquanto que as mentiras, as simulações e as falsidades descobrindo-se ou não criam correntes diferentes de apoio e repúdio que dissolvem o centro e a responsabilidade individual. O vício, não: é cerebral, calculado, meticuloso. Por isso, é perigoso. Desenvolve uma forma de vida paralela à realidade e absolutamente insuspeita. Desenvolve na pessoa uma segunda vida. Outra pessoa. É este o tema do filme.

Há no início uma rotina maquinal. Brandon (Michael Fassbender) tem uma vida sem sobressaltos, absurda, mas aparentemente satisfatória, dividida entre sexo mercenário, sexo ocasional, pornografia e auto-satisfação. Entra em cena a irmã, Sissy (Carley Mulligan), uma suicida compulsiva, emocionalmente desequilibrada, que procura protecção, família e um refúgio que a afaste de si própria e dos seus distúrbios, mas a quem ele resiste violentamente na defesa do seu território e do seu secreto vício. Egoísmo puro. Ela apela aos laços de sangue e ele é brutal no despeito e na rejeição. Ela telefona-lhe ininterruptamente “pedindo socorro”, mas ele, obsessivamente focado na sua espiral sexual, compulsiva e incontinente recusa atendê-la e ela, sozinha, acaba por se tentar suicidar novamente. Porém, ele salva-a in extremis, e perante o espectáculo de horror descobre a culpa e, aparentemente, o arrependimento. Fica-se na dúvida. O registo voyeurista do filme, torna-o inconclusivo e sem densidade. À excepção do título que acaba por ser um juízo moral, uma vez que no filme não encontramos propriamente um sentimento de vergonha, tudo pretende ser sem interpretação, uma espécie de vejam o que aconteceu, ainda que, o que aconteceu seja um arranjo conveniente sem verdadeira construção da personagem. Quem é Brandon?, de onde vem?, como chegou ao que chegou?, como vive com isso intimamente? Sobre isto nada. Descreve-se um anónimo, como se houvesse verdade num estereótipo.

Curioso seria abordar este tema a partir de dentro, do tormento da personagem, da origem e do progresso do vício, e o seu culminar, por si mesmo, e não provocado pela acção exterior da irmã que vem apenas dar um tom moral ao tema do vício que era suposto ser abordado e escalpelizado. Seguiu-se a via mais simples dos clichés, de um sentimentalismo superficial, estereotipado e pretensiosamente elegante. A estética consome-se sem poética.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Solidão e Genialidade



A propósito da demência de Margaret Thatcher, e tendo presente Fernando Pessoa que uma exposição actualmente na Fundação Calouste Gulbenkian trouxe à ribalta, mas considerando muitos outros.

O que é a normalidade e o que é a demência. Falar sozinho, falar com fantasmas, viver mergulhado numa vida interior e ver daí o mundo exterior, dar-lhe a partir daí um conteúdo, isso será demência? O que sempre fizeram os artistas e os filósofos?, aqueles que o tempo nunca compreendeu e, por isso, segregou ou nem sequer atendeu? A loucura, era ou não lucidez? Com quem falar quando não há interlocutor? A quem ouvir quando ninguém pode dizer o que importa dizer?

O ser excepcional tende para a solidão e para o isolamento. Tem de construir o seu lugar, tem de construir as suas pontes e tem de se construir no imaginário dos outros. É natural que fale sozinho, que conte só consigo e que tenha uma determinação férrea e sem hesitações, pois, sabe que não terá ajudas. Ao contrário dos que decidem sem responsabilidade diluídos no grupo, o líder tem de decidir sozinho, não alija responsabilidades, não se esconde, não se dissimula. Apresenta-se, afirma-se, confirma-se e sofre sozinho as consequências.

O poeta maior, como o político maior, como o artista ou o filósofo maiores, são inteiros e íntegros. São a sua arte e a sua loucura no mesmo instante e no mesmo lugar. E não mudam. Talvez a percepção que se tem deles mude, e muda, mas eles propriamente não mudam. Só sabem viver de um modo. O que numa idade é visto como fulgor, percepção, talento e singularidade, noutra idade é convertido em demência, loucura e alienação degenerativa. Mas os sinais estão lá todos em todas as idades. Muda a alegria, transforma-se a ingenuidade, enfraquece a determinação, empalidece a esperança, emerge uma nostalgia e instala-se um sentimento de perda, mas não muda a obstinação, a certeza da visão, a luminosidade.

Recolhidos ao seu mundo que agora os outros chamam de fantasia, os ex-líderes-da-sua-obstinação preferem regressar ao sossego da sua intimidade e viver rodeados dos seres vivos e mortos que independentemente de estarem vivos ou mortos estão presentes no grande salão da sua alma.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Registos de Cinema XII, The Iron Lady de Phyllida Lloyd, 2011



Sempre ficará uma sensação de incumprimento quando se tratar de uma personagem histórica com a importância de Margaret Thatcher numa perspectiva que secundariza o centro da sua acção e da sua intervenção no curso da história que escreveu e moldou.

Se o momento que vivemos, do ponto de vista económico e social, requer um exemplo de liderança, aquela que tanto tem faltado na Europa, talvez fosse mais oportuno um biopic que demonstrasse o que é um político inteiro e que importância têm as convicções e as decisões de carácter político que interpretam, contra ventos e marés, medos e hesitações, tácticas partidárias e interesses pessoais, as nações e as pátrias, a sua história e o seu destino. É com esses políticos que o Povo se identifica, e são esses políticos que, por causa dessa identidade com o Povo, definem a história e as fisionomias das Pátrias.

Em The Iron Lady é-nos dada uma fase do processo, dito, de demência que se foi adensando após ter saído do 10 da Downing St. sugerindo até, que na fase final da sua governação, Margaret Thatcher tivesse já sentido alguns sinais preocupantes, como tremuras e dificuldades de visão, da doença que a viria a diminuir. Curiosamente, essa fase, que é intermediada por permanentes flashbacks que vão pontuando alguns dos momentos cruciais da sua ascensão e declínio políticos e também com factos da sua vida pessoal, incorpora um lado fantasioso e, simultaneamente, irónico e divertido, que sempre a terá acompanhado e de algum modo, tendo formado o seu mundo, fechado, familiar, intimista, assim permaneceu depois da morte do seu marido Denis. Margaret Thatcher parece sempre ter vivido com aquele diálogo interior dentro dela.

Singrou por entre dificuldades económicas e sociais, vinha de um meio popular de pequenos comerciantes; singrou por entre dificuldades de género, era uma mulher no mundo dos homens; singrou por entre dificuldades de afirmação de um modelo político, era liberal entre socialistas e comunistas e conservadores cobardes; singrou num momento histórico de colapso económico e social, a Inglaterra estava na bancarrota ocupada por sindicatos e refém de regalias sociais impagáveis; singrou por entre as dificuldades da guerra fria e do terrorismo tendo contribuído para a queda do bloco de Leste e mantido uma firmeza inigualável na guerra contra o terrorismo dentro de portas e fora de portas como no caso da libertação das ilhas Malvinas. Afirmou a Inglaterra como uma nação de princípios interveniente entre as nações mais poderosas.

Estas dificuldades e esta permanente superação só acontecem em pessoas excepcionais e com uma psicologia especial. O filme sugere uma certa bondade na demência que é de algum modo uma continuação de um “falar sozinha” a que Margaret Thatcher se habituou desde muito cedo por perceber que teria de travar todas estas batalhas contando acima de tudo consigo própria, com o diálogo consigo própria, que de algum modo actualizava em cada momento diálogos pretéritos que ouvira, admirara e que a marcaram ao ponto de definirem o seu percurso político, a sua convicção íntima e os seus princípios incontornáveis. A Dama de Ferro era uma mulher cheia de emoções e sentimentos mas de uma dimensão que ultrapassava o sentimentalismo vazio dos fracos ou dos oportunistas. É, aliás, um momento alto do filme, aquele em que Margaret Thatcher define a diferença dos princípios da sua actuação em relação aos outros, através do monólogo em que responde ao médico que a acompanhava, quando este lhe perguntou se para ela era difícil ser obrigada a sentir. Ela indigna-se e responde:

“What?
What am I bound to be feeling?
People don’t think any more, they feel.

How do you feeling? Oh, I don’t feel comfortable!
Oh, I’m so sorry we, the group, were feeling...!

You know, one of the great problems of our age is that we are governed by the people who care more about feelings than they do about thoughts and ideas.
Now, thoughts and ideas, that interests me.
Ask me what I’m thinking!

— What are you thinking, Margaret?- asks the doctor.

Watch your thoughts, for they become words.
Watch your words, for they become actions.
Watch your actions, for they become habits.
Watch your habits, for they become your character.
Watch your character, for it becomes your destiny.
What we think, we become.

My father always said that
And I think I am fine.”


Este diálogo define o carácter de Margaret Thatcher. Não é uma mulher sem sentimentos, mas alguém que os vive na intimidade da família e dos que ama. Publicamente, a forma de amar os outros é com o pensamento: o pensamento que devém palavras, que devêm actos, que devêm hábitos, que devêm carácter e assim determinam o nosso destino.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Registos de Cinema XI, Une petite zone de turbulences de Alfred Lot, 2010


Um filme banal, sem muita graça, uma comédia de costumes que vive dos comportamentos hiperbólicos, disfuncionais e inconsequentes das suas personagens. Um filme deste tipo não justificaria uma reflexão séria por haver nele uma implícita manipulação refém do cómico de situação.

Apesar de superficial, o filme pretende tratar de um tema: o amor, ou melhor, as relações emocionais. Não do amor na sua profundidade substancial, mas do amor enquanto objecto, enquanto suporte útil das relações entre as pessoas. Esta versão do amor é aquela que traduz os tempos actuais e, por isso, não sendo o filme nada de especial tem o mérito de dar o lado ligeiro com que o amor é tratado e vivido nos nossos dias. Na prática é um filme que trata do amor que não existe entre pessoas que dizem que se amam. Bem diferente de um outro filme recente “Barney’s Version” de Richard J. Lewis (2010) onde o amor é tratado com uma precisão tocante e até comovente.

Jean Pierre Muret (Michel Blanc), um reformado , ainda um pouco incomodado com a sua reforma compulsiva, descobre uma mancha nas costas, um pouco acima da anca e convence-se que é um cancro e que vai morrer. A família próxima é a mulher Anne (Miou-Miou) com quem vive e que o engana às tardes com um ex-colega de escritório dele, David (Wladimir Yordanoff), e dois filhos: Cathie (Mélanie Doutey), separada mas amiga do ex-marido, Fabien (Eric Caravaca), com quem reconhece ter tido a paixão da sua vida, e com um filho de 5 anos, Hugo (Jolhan Martin), pretende voltar a casar com um empresário da noite, Philippe (Gilles Lelouche), proprietário de uma discoteca, casamento que o pai desaprova totalmente por considerar Philippe totalmente desadequado para a filha; e Mathieu (Cyril Descours), gay, vive com um namorado, Olivier (Yannick Renier), numa relação conhecida mas não assumida.

O espectro da morte e o casamento da filha, produzem uma turbulência que vai alterar a ordem recente da vida familiar levando ao desenlace das mentiras escondidas e dos factos não assumidos e à superação dos receios prorrogados e das hesitações estéreis.

Todas as personagens são emocionalmente imaturas, todas as personagens não vivem o amor tal qual ele é, mas segundo o desejo do que cada um quer que ele seja, de acordo com as suas necessidades, interesses e conveniências. Um amor que ou é à medida, ou não serve. É neste aspecto que vale a pena olhar para este filme. Todos os equívocos e conflitos têm origem numa coisa muito simples: o amor não é o que nós queremos que seja mas o que acontece, e o que acontece, está para além da nossa vontade, interesse e conveniência, é uma revelação e é um caminho que se segue largando todos os outros. Obriga a opções, obriga a “sair da zona de conforto”. É uma raridade. Quem o descobre alimenta-o, quem não tem disponibilidade para se abrir a ele apenas o consome nas suas formas mais egoístas, como o sexo. Chama-lhe amor para se atribuir uma dignidade e um valor, mas essa nomeação é apenas um anestésico para a consciência.

Percebemos naquelas juras de amor e naquelas decisões de amar, nas promessas, uma forma infantil de ilusão, a estafada ideia de avançar e depois logo se vê, o querer acreditar. O amor que não põe o outro primeiro não é amor, poderá ser necessidade de companhia, necessidade de afirmação social, poderá ser necessidade emocional, mas não é amor.

Jean Pierre, como todo o ser que se deixa transtornar pôs o seu ego à frente dos que o rodeavam; Anne, como todo aquele que engana pôs a sua  vontade à frente do respeito e da fidelidade; Cathie, queria um futuro marido, mas tinha dificuldade em  aceitar o que se perfilava tal qual ele era; Mathieu, tinha o namorado mas queria-o separado da sua vida, metido, estanque, na gaveta da sua fantasia mas fora de todas as outras; enfim, todos punham qualquer coisa, senão tudo, à frente do que diziam amar. Nenhum amava. Todos fantasiavam sem conteúdo. No filme, claro!, porque trata de pessoas inconsequentes, e se trata de uma comédia ligeira, tudo acaba em grande harmonia e expurgando dessa harmonia a única personagem que tentou ser verdadeiro, o amante da mulher, que apesar de enganar um amigo no ponto vital que é a intimidade de uma relação, tentou que a mulher, sempre hesitante de carácter, se assumisse na verdade nua e crua. O que ela não fez.

Desta estranha normalidade se faz este filme, banal, superficial, sem grande graça, mas que traduz uma certa moral que se tornou comum e aceite, genericamente, nos nossos tempos.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Registos de Cinema X, Impardonnables de André Téchiné, 2011


Imperdoável, não é o mal que fazemos uns aos outros, mas sim a crueldade desse mal. A crueldade é o mal que fazemos sabendo que estamos a fazer mal. Existe, porém, uma forma de crueldade que diria passiva, mas trágica, originada pela vulnerabilidade e permissividade de um carácter indefinido e, de algum modo, intimamente indiferente.

Vingança, egoísmo ou indiferença, são três formas de crueldade. Imperdoável. A filha, Alice (Mélanie Thierry), que se vinga do pai, indiferente ao marido e à filha; o egoísmo do pai, Francis (André Dussolier), que manipula e usa os outros como objectos do seu prazer e das suas necessidades (sobretudo as artísticas); e a indiferença de Judith (Carole Bouquet), a mais imperdoável das crueldades, e a mais trágica.

Entre vingança, egoísmo e indiferença orbitam outras personagens que vêm evidenciar os comportamentos das três principais. O centro é Judith. A crueldade que faz sofrer psicologicamente. Judith a indiferente, para quem o amor é a medida da expectativa do outro, e não do envolvimento de si própria, é a crueldade superlativa, como o objecto amado que está ausente, distante e inapreensível. Está ausente e pode estar noutro lugar, é indiferente. Um corpo que se oferece sem pedir nada em troca porque lhe é indiferente. Um corpo que fica, na sua beleza perturbante, morto e apenas receptivo à intromissão, à devassa e à manipulação. Um corpo que se entrega mas não se dá.

Essa indiferença, que é? A anestesia da dor de um amor perdido, de uma decepção castradora, de uma traição mortal, de um medo, que é? Esse o mistério da indiferença, o silêncio em que se apaga e se esconde. O apagamento do ser perante os outros, o passado, a realidade. Apenas se dá como ausência, como vazio, como fantasia efémera sem finalidade nem compromisso. Como se entregar-se fosse um dever e não amor. O outro, os outros, ficam com uma ficção, uma fantasia sem realidade, perante si próprios, sós, sem reflexo, sem nada. Judith a indiferente, é uma figura escorregadia, talvez fiel por dever, mas infiel por devoção e cuja implacabilidade a torna uma deusa para idealistas e românticos e um puro objecto de prazer para manipuladores e oportunistas, como Francis.
Se Judith representa a indiferença como ausência e impassibilidade, cruel impassibilidade, Francis, representa o egoísmo, o egoísmo manipulador, que transforma tudo à sua volta num instrumento das suas necessidades, interesses e estratégias. Como todas as pessoas, talvez o próprio Francis não tenha a percepção de si mesmo tão envolvido que anda com os seus truques, as suas artimanhas e os seus esquemas. A dimensão dessa distância de si mesmo é dada pela gargalhada cruel e mortífera da filha quando ele lhe diz que quando está apaixonado não é capaz de escrever. A gargalhada despedaçante foi uma forma de dizer ao pai que ele não é capaz de amar e, por isso, não estar a escrever o seu livro terá outra razão. Qual será essa razão? Francis acaba por denunciá-la quando no final diz que depois de viver um amor, ou melhor uma paixão, está de novo em condições para se envolver com um novo romance, com a escrita de um novo livro. O seu processo criativo é, assim, a razão de ser das suas relações ditas amorosas. Forja uma relação, segundo a gargalhada cruel da filha ferida pelo seu desamor, para dela se libertar e, então, escrever. Tudo forjado?, tudo natural? ou simples coincidência? Para a filha, que o procura ferir e que o procura perturbar, é a sua própria natureza que o faz  ser assim e nada nele é sincero, autêntico, nem espontâneo. Excepto a reacção sentida e sofrida à sua gargalhada-denúncia.

As restantes personagens acompanham o tom do filme como se a natureza humana fosse toda ela useira e vezeira em crueldades, em males que fazemos uns aos outros e de que acabamos sendo as próprias vítimas, pagando-as com exclusão, isolamento e distanciamento. E a própria cadeia de maldades faz com que sendo vítimas nos tornemos carrascos.
A crueldade humana é o que é imperdoável. Mas a crueldade não é a humanidade.